– ACREANIDADE CONFIGURADA PARA A TRANSCENDÊNCIA –
por Eduardo Carli de Moraes, desenvolvido em 2024 a partir de texto originalmente publicado em Depredando o Orelhão ( 4 de abril de 2009)
É, galera, hoje (pasmem!) falaremos sobre o Acre. Sem zueira – pois só a “acreanidade configurada para a transcendência” fez dos Los Porongas, na história recente de nossa música, esta obra-prima amazônico-lúdico-poética que resplendeceu num dos melhores álbuns de rock feitos no Brasil neste século, lançado em 2007. Na época em que saiu, foi eleito um dos 25 melhores discos do ano pela revista Rolling Stone Brasil e a banda também foi uma das pontas-de-lança do movimento em torno do Circuito Fora Do Eixo.
Mas antes peguemos os trilhos da memória rumo ao tempo em que fui pivete: quando foi que “Acre” entra em meu radar? Olha, dele tenho até trauma: no ginásio, eu sempre rodava na prova de Geografia se me pedissem para nomear a capital desses “estados bizonhos” e super-longe (como o Acre). Tropeçava na decoreba e era obrigado a protestar: “vô lá saber, ‘fessora?” Peguei até raiva. Agora tô superando os preconceitos.
Porque visto daqui “de baixo”, com este olhar preso à maior megalópole do Sudeste, o Acre sempre me pareceu como algo alien. Um lugar que eu imagino mais parecido com algum exótico país estrangeiro do que similar às paisagens poluentas e repletas de arranha-céus de Sumpaulo, A Paulicéia Desvairada. E quem diria, caros leitores, que eu um dia sentiria ímpetos de pesquisar mais sobre aquelas lonjuras do Brasil por causa de uma recém-adquirida paixão por uma banda acriana! Com passaporte sônico nos tímpanos, bóra então fazer um rápido turismo cultural, subindo “por escadarias amazônicas até Marte”!..
“A cabaça das idéias
Conhecida por cabeça
Quem sabe talvez mereça
Rosa, lírio ou azaléia.“
Pedi uma mãozinha pra Wikipédia e descobri curiosidades interessantes sobre este canto do Brasil repleto de vazios populacionais, reservas indígenas e matas (quase) intocáveis: o Acre um dia já foi território pertencente à Bolívia e só foi englobado ao Brasil no começo do século 20; a produção de borracha por ali era tão exorbitante que, durante a II Guerra Mundial, os aliados foram muito auxiliados pelas nossas exportações, tanto que depois mandaram muito capital para a criação da Companhia Siderúrgica Nacional; e existem sim, pasmem, alguns “acrianos ilustres”: Enéias Carneiro (ele mesmo, do “meu nome é Enéias!” e do “vote no PRONA!”), Armando Nogueira e Glória Perez.
Pois é de lá, das profundezas da Amazônia selvagem, erguendo-se do meio das seringueiras que produziram tanta borracha exportável, que jorra o som do Los Porongas – uma das mais incríveis, originais e idiossincráticas das bandas nacionais recém-nascidas. Gravado e produzido pelo Philippe Seabra, da Plebe Rude, o álbum de estréia dos caras é fodástico: soa como um pós-grunge nacionalíssimo feito e tocado com muita garra, ambição e frescor de idéias. A banda, por não inserir no caldo muito tempero regional, tem potencial para ser curtida em todo território nacional, agradando a indies, grunges, hippies, MPBistas e mangue-beatniks.
O vocalista e principal compositor Diogo Soares mostra-se um letrista prendado, cheio de versos misteriosos, associações-de-palavras pouco usuais e uma performance vocal que beira o teatral mas que jamais soa afetada. Já os riffs e dedilhados do guitarrista João Eduardo são espetáculo à parte: ele soa como um adolescente grungy, com manifesto gosto pelas sombras, daqueles que provavelmente cresceu com os ouvidos antenados em Seattle e predileção pelos pedaizinhos repletos de fuzz e bigmuff. Os Porongas parecem estar tentando estabelecer uma ponte entre o grunge e a sonoridade do britpop noventista (“Enquanto uns Dormem” começa soando como a irmã latino-americana de “High and Dry” do Radiohead) e do pós-punk deprê do começo dos 80 (“Subvertigem” é quase um abrasileiramento de “She’s Lost Control”, do Joy Division, inclusive contando com uma personagem feminina atormentada).
O tormento é sempre a solução
Me atormenta a calma e a mansidão
O guitarrista João Eduardo encarna ora um Jerry Cantrell (“Tudo ao Contrário” é Alice in Chains puro), por ora um Kim Thayil (“Suspeito de Si” lembra muito Soundgarden da última fase), indo de tranquilos e climáticos dedilhados à explosivos clímaxes saturados de efeitos. E tem até a manha de arriscar quase um stoner-metal brutal no riff de “Subvertigem” (quase um Kyuss sujão). Costumo reclamar que o rock brasileiro sofre de raquitismo guitarrístico: falta guitarra foda em quase toda banda nacional que ouço por aí (com raras exceções: o Cachorro Grande, que possui um mini Keith Richards de boina em seu line-up, sendo a principal delas). Com o Los Porongas dá gosto de ver uma guitarra ser usada de modo tão eficaz e inventivo, ainda que nada soe extremamente original – soa massa, e é o que conta.
Serei cortante como a lâmina da língua
Eu vivo à míngua do meu próprio ser
E vá crescer! Que eu sempre serei criança…
Quanto à temática, uma melancolia terna, expressa em catarse poética, parece dominar o “ambiente sentimental” dos Porongas. Mas em nenhum momento eles caem no xorôrô emo tão em voga em nossos lacrimejantes tempos, ainda que certos versos venham carregados de desalento (“transparente a dor / diluída em lágrimas / e outras invenções febris”, diz a letra de “Suspeito de Si”). Mas a tristeza, aqui, alça um vôo de lirismo e fina poesia, não resvalando jamais para o sentimentalismo barato.
“Sou metade com inteira dor”, canta Diogo, e ficamos nos perguntando se ele se refere a Platão e sua mítica sugestão de que somos todos partes de organismos mutilados, que um dia foram plenos, mas que agora estão condenados a ser metades em incansável e cansativa busca de suas “almas-gêmeas”. “Eu não sou daqui, eu sou de Plutão / Sou um praça em combate vão”, canta desconsolado, como se fosse mesmo uma metade reconhecendo-se incapaz de completar-se.
A razão espaço-tempo
é sempre tão desencontrada
Todo início quase um fim
Tanto sempre sempre acaba…
A sensação, ao embarcar na viagem poronguiana, é a de caminhar num mundo sem pistas, em estado de desnorteio, meio que às cegas, sem muitas bússolas e à luz de velas. “Vou por atalhos / Se faço curva faço nó / Eu não tenho timão / Nem direção maior”, diz “Enquanto uns Dormem”. É um mundo onde até mesmo as “entidades” que normalmente simbolizam a Perfeita Positividade revelam que trazem em si toda uma ambivalência e um jogo de contradições. É o caso de “Como o Sol”, onde o Astro-Rei é descrito como algo mutante e pleno de consequências das mais diversas: “como o Sol / que se esconde ou se espalha / Que aquece ou atrapalha / Que derrete ou agasalha”.
Vai-se pela vida com o peito repleto de “anseios temperados com receios, paranóias e outras dúvidas”, como diz “Nada Além”. Cada um com seu escudo e seu esconderijo. Cada um pedindo aos outros emprestadas as escadas, que vem sempre sem degraus, e que devolvemos sempre depois do Carnaval. O que importa é jogar fora “tudo o que não interessa agora” e ir, de barco a vela ou a nado, no rumo do que “guarda o horizonte… o nome de amanhã”. Complicou? É que os Porongas estão aí nos confundindo para nos esclarecer – e essa arte é mais feita para desnortear que para apontar caminhos. É som que espalha sombras para ver se as luzes se acendem. Poesia que causa uma vertigem do bem.
A vontade é citar mais uma meia-dúzia de versos e estrofes, mas deixo aí somente o convite: caiam de cabeça no som e no “lego de palavras” poronguiano – vale a pena! É um discaço, original e lírico, catártico e sombrio, sentimental e elevado, de uma banda que conseguiu cometer logo em sua estréia um clássico instantâneo do rock independente nacional. Los Porongas é um álbum que vai revelando um valor cada vez maior com repetidas audições e possui tão numerosos quebra-cabeças poéticos que consegue manter nossas mentes intrigadas por muito tempo. Borracha o escambau: é isso aqui é o melhor produto de exportação do Acre!
OUÇA ou BAIXE (11 músicas – 256 kps – 85 MB):
https://open.spotify.com/album/1zjFNDDc6u51ToidMcLnkR?si=JHs4kGFDRDiPbMmCvJUueg
https://www.hominiscanidae.org/2010/01/los-porongas-los-porongas.html
“Contradição primeira. Urbanidade amazônica. Seiva que escorre nas veias. Ceia do cosmopolitismo. Correr nos rios assim como se corre nas ruas. Inundado a cada verão do sul. O destino. Se é que há. E se houver. Feito pelas mãos próprias. Impropriedade do termo. Porque coletivo. Despropriedade imaterial. Cultura pop?ular. Para cada verso uma nota e em cada nota um valor. Seringais perdidos em nossa memória genética. Eletrizados no passado do amanhã. Hoje. Batalha. Poética da chama. Irmandade. Acreanidade configurada para a transcendência. Los Porongas.” – Extraído do ENCARTE do 1o ÁLBUM PORONGUIANO
LEIA MAIS:
CORREIO BRAZILIENSE – CARTA CAPITAL – UAI
OUÇA TAMBÉM:
LOS PORONGAS – O Segundo Depois do Silêncio (2011)
https://www.hominiscanidae.org/2011/06/los-porongas-o-segundo-depois-do.html
Publicado em: 26/10/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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